Aos dezoito dias do mês de agosto de mil novecentos e setenta e sete, nascia no
seio das famílias Machado e Rodrigues, o segundo filho do casal: um menino
chamado Marcio.
Apesar de todos os problemas enfrentados pela genitora, Marcio foi um
menino muito desejado e sua chegada trouxe bastante alegria para a casa.
Porém, por volta de 1 ano e 6 meses, seus pais começaram a perceber que
Marcio era diferente, pois, além de não emitir sons, por diversas vezes chamavam
seu nome e ele não virava para ver. Batia-se panelas, faziam barulho e nada de
reação ao som.
Foi então que se iniciou a busca por um diagnóstico preciso, que veio como
uma facada para os genitores: Marcio era surdo bilateral profundo e nunca iria
falar ou mesmo escutar.
A princípio, a família preferiu negar a informação, a se desesperar com a
situação, pois alguns médicos chegaram a dizer que não aceitassem que Marcio
apontasse ou fizesse mímicas, senão poderia ter problemas cognitivos.
Após muitas idas e vindas de Fortaleza para o Rio de Janeiro (INES),
finalmente Marcio adquiriu seu aparelho para surdez e começou a ser oralizado
visando um mínimo de comunicação.
No desespero de não saber o que fazer com seu filho e com medo que ele
ficasse "retardado", Socorro resolveu então fazer uma promessa para São
Francisco das Chagas, na esperança de que seu filho aprendesse pelo menos a
escrever para poder se comunicar de forma adequada.
Os anos se passaram e Marcio fez fonoterapia por pelo menos 10 anos
seguidos. Sua vida se resumia às idas e vindas para a fonoaudióloga, e a buscar
vagas para estudar, pois, como o pai trabalhava em banco, sempre era transferido
de cidade a cidade, dificultando ainda mais a vida do filho.
Iam de escola em escola, se humilhando para conseguir um local que o
aceitasse como uma pessoa normal, porém, os argumentos eram sempre os mesmos:
"não temos profissionais habilitados, mas podemos colocar em uma sala junto aos 'excepcionais' (termo muito usado na época para pessoas com algum comprometimento cognitivo)".
Socorro não conseguia compreender tamanho preconceito e continuava
tentando, insistindo, lutando. E, do seu jeito, ia ensinando ao filho a se
comunicar e a escrever.
Marcio detestava ir pra fonoterapia, pois não sentia prazer em reproduzir
sons sem saber ao menos o q estava fazendo. Para ele, era algo cansativo e sem
sentimento de satisfação, como se um macaco ou um cachorro tivesse sendo
adestrado. Afora o fato de que o aparelho auditivo amplificava tanto os sons
externos q Marcio vivia com dor de cabeça, porém, continuava sem ouvir. Eram
apenas pancadas de som grave, como que um subwoofer ligado às suas orelhas, ao
invés de sons mais agudos, vozes, melodias ou barulhos da natureza.
Por diversas vezes, Marcio desligava o aparelho auditivo, evitando maiores
incômodos, tendo em vista que, para ele, não fazia diferença a presença do mesmo,
e não havia emoção alguma em "ouvir" esses barulhos q chegavam até ele. Foi qdo
uma pessoa viu Socorro e Marcio num ponto de ônibus e explicou que havia uma
escola específica para surdos.
A mãe não pensou duas vezes e levou o Marcio que, na época já se encontrava
na pré adolescência, para conhecer o local. A escola indicada, se tratava do
Instituto Filippo Smaldone. Uma escola de freiras que visava a
oralização, socialização e aprendizado dos alunos surdos.
Ao entrar na escola, Marcio sentiu uma emoção que jamais imaginou
vivenciar: que ele não era o único surdo no mundo e havia vários meninos iguais
a ele. Todos se comunicando com as mãos.
Crianças felizes, correndo por todos os lados, a brincarem e se comunicarem
como podiam. Foi como se Marcio acordasse de um pesadelo, pois até então, seu
envolvimento era com os amiguinhos de infância (todos ouvintes) e seus animais
de estimação (um macaco prego, um cocker spaniel e uma preguiça).
Ao ver a felicidade e interação fácil do filho com os demais alunos surdos,
da escola, Socorro se sentiu aliviada de tanta busca e resolveu matriculá-lo
imediatamente.
Em menos de seis meses Marcio já sinalizava como se sempre tivesse falado
em Língua de Sinais. A vontade de crescer e de se comunicar era tamanha que
rápido absorveu os conteúdos escolares os quais estavam bastante defasados e
passou a se desenvolver de forma adequada e satisfatória na escola. Porém, a
parte ruim chegou: a escola só funcionava com o ensino fundamental e Marcio
teria que novamente mudar de escola. Foram em busca do Instituto de Surdos,
porém, os pais preferiram tentar uma escola particular, pois Marcio já estava se
desenvolvendo bem. E assim aconteceu: Marcio estudava com ouvintes e, depois das aulas, junto aos
amigos da escola, ia aprendendo os conteúdos.
Nesse meio tempo, o contato com os surdos apenas aumentou e Marcio começou
a frequentar semanalmente locais em comum aos seus pares e a iniciar a luta pela
implantação da Língua de Sinais como uma língua de fato.
Ao terminar o ensino médio, Marcio ingressou imediatamente na faculdade e,
pela primeira vez, pôde ter um intérprete para ajudar a repassar o conteúdo, que
sempre era feito pelos colegas de sala. Foi no ano em que a Libras passou a
ser reconhecida como língua e os intérpretes puderam atuar nas escolas e
universidades. Nesse mesmo período, começou a trabalhar como professor de libras
e informática educativa para os alunos do Instituto Cearense de Educação de
Surdos. Nessa época a diretora Norma Leite Barbosa Campos, diretora da escola, havia iniciado uma luta junto à comunidade surda, para a implantação da Libras e ensino da língua junto aos pais dos alunos surdos, visando uma melhor relação familiar. Marcio entrou nessa luta sem imaginar que mais a frente, sua chefe se tornaria sua sogra.
No ano de 2005, Marcio formou-se em Projeto e Implementação de Redes de
Computadores. Uma vitória gigantesca não apenas para ele - devido às suas
superações diárias - mas para Socorro, q lutou tanto por ver esse dia. Mal sabia
ela q Marcio ainda iria surpreendê-la bastante, pois, a partir daí, iniciou a
fase de sucesso de Marcio.
Em 2007, Lília ingressou como psicóloga do Instituto de Surdos. Foi quando
conheceu Marcio. No fim desse mesmo ano, os dois iniciaram o namoro. Nesse mesmo
ano, Marcio foi aprovado com louvor no Exame Nacional de Certificação de
Proficiência no Ensino da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS – Nível
Superior.
Lília passou a incentivar ainda mais nos estudos de Marcio e o mesmo
ingressou no curso de Mestrado em Educação ao mesmo tempo que fez uma
especialização em Docência do Ensino Superior. Começou então, a ministrar aulas
em universidades de Fortaleza e do interior, buscando dar maior conhecimento às
pessoas sobre a Cultura e Comunidade Surdas, bem como o aprendizado da Libras de
forma consistente.
Casaram-se em 2009 e aos poucos foram formando sua própria família, a qual se iniciou com os dois cachorros da raça shih tzu - Boss e Bila - que são seus "filhos
adotivos" e se comunicam com Marcio através da Libras.
Em 2010, Marcio foi convidado para implantar e implementar o CREAECE, onde
participou de diversas bancas de avaliação de intérpretes de Libras e
instrutores surdos. Também, junto à equipe de surdos da instituição,
começou a elaborar apostilas de Libras através dessa instituição para divulgação da língua e distribuição em
todo o Estado do Ceará.
Em julho desse mesmo ano defendeu seu Mestrado em Educação, sendo aprovado com louvor
pela banca e resolveu ingressar no Doutorado em Ciências da Educação,
dedicando-se ainda mais a palestras e aulas sobre o assunto.
Em julho de 2014, Marcio defendeu seu doutorado, e, mais uma vez foi
aprovado com louvor. Dessa vez, participava da banca examinadora a equipe do MEC
e todos ficaram encantados com sua pesquisa e seu trabalho, bem como toda a sua
superação. Sua defesa foi emocionante para todos que lá estavam. Foi a esposa
Lília quem interpretou e, nem mesmo ela conseguiu conter a emoção ao transmitir
o conteúdo passado e ao ver Marcio ser aplaudido de pé por todas as pessoas que
se encontravam no auditório lotado da Universidade.
Marcio foi o primeiro surdo bilateral profundo do nordeste do Brasil a conseguir ingressar e concluir Doutorado em Ciências da Educação.
Em outubro de 2014, Marcio e Lília foram a Washington conhecer Gallaudet: a
primeira universidade de surdos do mundo. Foi uma experiência ímpar para ambos,
que puderam trazer novas informações para a comunidade surda.
Em fevereiro de 2015, Marcio foi convidado pelo Secretário de Educação do
Município - Jaime Cavalcante - para fazer a implantação e implementação da
Escola Bilíngue da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Em agosto desse mesmo ano, após aprovação na seleção de diretores, assumiu de fato e de direito a direção dessa escola, que passou a se chamar Escola Municipal de Educação Bilíngue Francisco Suderland Bastos Mota. Esse trabalho tem sido bastante enriquecedor
para Marcio, que viveu na pele o que é estudar numa escola que não está adequada
para suas necessidades.
Hoje Marcio tem uma filha chamada Liz, a qual ainda tem meses de vida, mas já está aprendendo de forma natural a língua materna do pai.
Marcio continua a ministrar cursos e palestras sobre surdez e Libras nas universidades de Fortaleza e seus cursos agora são ministrados na Fields Center, empresa da sua esposa Lília e seu cunhado Germano, ambos bastante engajados na acessibilidade adequada dos deficientes à sociedade.
Marcio continua a ministrar cursos e palestras sobre surdez e Libras nas universidades de Fortaleza e seus cursos agora são ministrados na Fields Center, empresa da sua esposa Lília e seu cunhado Germano, ambos bastante engajados na acessibilidade adequada dos deficientes à sociedade.