Por Aislane Oliveira
Passei um bom tempo procurando um título
para poder falar do trabalho incrível da equipe de reportagem do
Conexão Repórter (SBT) apresentada por Roberto Cabrini, no dia 24 de
janeiro de 2013. No entanto, não podia achar título melhor do que o dado
pela própria equipe: A casa dos esquecidos.
A reportagem me instigou a, mais uma vez, escrever sobre a nossa luta
diária para o fechamento de locais como o hospital psiquiátrico mostrado
na reportagem exibida pelo programa. Sabe-se que foi elaborado no dia
18 de maio de 1987, na I Conferência Nacional de Saúde Mental, um
documento que propunha a reformulação do modelo assistencial em saúde
mental, bem como a reorganização dos serviços de atendimento, destacando
como melhor forma de tratamento o atendimento extra-hospitalar e as
equipes multiprofissionais, com isso, iniciaram-se as discussões acerca
dos direitos de cidadania, bem como de legislação, em relação ao doente
mental (Saúde Mental, 2007).
Infelizmente, a forma tradicional, conhecida por muitos, de se “tratar” a
loucura, é caracterizada principalmente pelo asilamento e exclusão. Segundo Basaglia (1985), quando um sujeito portador de transtorno mental
é internado em uma dessas instituições psiquiátricas, perde seus
direitos e é submetido ao poder da instituição, fica, portanto, à mercê
dos delegados da sociedade, conhecidos como “médicos”, que o afastou e o
excluiu. Este modelo de tratamento serviu como uma forma de controle
social do Estado ao se tratar de trabalhadores que perdeu a capacidade
produtiva (Grunpeter, Costa, Mustafá, 2007). Surge daí a principal
critica a esse modelo de assistência, cuja representação surge por meio
ético, tanto no aspecto profissional quanto ao resgate dos direitos
humanos aos sujeitos mentalmente doentes, muitos destes, resultado de
sua própria sociedade.
Para Basaglia
(1985) a psiquiatria foi uma técnica altamente repressiva, que o Estado
sempre usou para oprimir os pobres e doentes, aqueles que não
produziriam mais lucros para a sociedade, fortalecendo assim, a ideia de
que essa questão sempre esteve fortemente vinculada à lógica do
capitalismo, se o sujeito não produz, ele não “serve”, e o que deve
fazer é exclui-lo da sociedade, o modo de exclusão pouco importa, desde
que ele não interfira no progresso do Estado.
Baseando-se nas terríveis formas de tratamento as quais os mentalmente
doentes (rótulo usado para camuflar a ideia de que só quem produzia
podia ser considerado saudável) foi que surgiu a luta pelas mudanças no
modelo de assistência, cujo objetivo principal era a substituição do
modelo asilar por uma rede de serviços territoriais (Grunpeter, Costa,
Mustafá, 2007).
Acerca de um ano o
programa Conexão Repórter havia recebido denuncias de que o Hospital
Psiquiátrico Vera Cruz, de Sorocaba-SP, estava tratando seus internos
sobre condições precárias e desumanas. Partindo disso, o programa
realizou um documentário que mostrou os bastidores desse local
caracterizado por abandono e violência.
Durante duas semanas um produtor do Conexão Repórter, disfarçou-se de
funcionário do hospital para mostrar a realidade dos pacientes que por
lá foram esquecidos. Algum tempo depois, Roberto Cabrini (apresentador),
também visitou o local e entrevistou alguns dos pacientes, presenciando
imagens fortes e inacreditáveis.
Possivelmente não conseguirei transcrever tão bem as sensações que me
ocorreram durante a exibição da reportagem, tamanhas eram elas. De
inicio é revoltante, falo não somente como profissional da saúde, porque
antes disso sou um ser humano. Não há descrição melhor para os
sentimentos do que: Negativos. Em nenhum momento se sente aquela “coisa”
mágica chamada esperança, de que algo ali se transforme. Não por
pessimismo, mas pelas condições dadas aqueles esquecidos. Se hora a
revolta batia no peito, por outro lado a tristeza transbordava aos
olhos.
Constantemente o repórter
fazia a seguinte pergunta para os funcionários do hospital: “É normal
esse tipo de tratamento?” “Você acha isso normal?”. A reposta,
acreditem, foi a mais inacreditável de todas: “Sim, é normal”. Daí me
surgiu uma dúvida: pesquisei no dicionário o conceito de Normal, pois
até onde eu sabia o que ali era retratado não tinha nada de normal.
Então, eis que achei: “De acordo com a norma, com a regra; comum”.
Cheguei à conclusão de que para eles o normal havia se confundido com o
comodismo, uma vez que não encontrei uma explicação melhor para a
situação, estão tão acomodados e preocupados com suas próprias vidas que
aquela situação precária e desumana havia se tornado normal aos seus
olhos. O que é contraditório, já que para a própria sociedade
normalidade é tudo aquilo que segue dentro da razão, ou que está de
acordo com as normas e princípios regidos por ela. Bom, sendo assim, o
que de razão tem essa forma de tratamento? Nenhuma, julgo eu.
Roberto Cabrini também exaltou o tipo de tratamento: “Como é possível
que o ser humano se recupere nessas condições?” Simples, eles não se
recuperam. Ao contrário, estão cada vez mais doentes, fracos e
esquecidos. Os pacientes vivem em estado de medo em consequência das
constantes agressões (pacientes contra pacientes, funcionários contra
pacientes), falta saúde, falta motivação, morrem de frio (literalmente,
pois estão sempre nus e não têm sequer cobertor para que os protejam),
não se alimentam adequadamente (se há comidas são indigeríveis). A falta
de higienização agride a quem vive lá e aos que visitam o local. Só
existe um único momento em que parece que as coisas vão se resolver,
quando o hospital recebe a noticia da visita da fiscalização, digo
“parece” porque é só isso mesmo, é só uma maquiagem que sairá facilmente
com água após alguns dias. De acordo com o Ministério da Saúde, existem
no Brasil 59 hospitais psiquiátricos públicos funcionando seguindo o
modelo antigo de tratamento manicomial, e mais 160 credenciados pelo
SUS, são aproximadamente 32.735 leitos nos hospitais públicos. Apesar
dos avanços legislativos no que diz respeito ao campo da saúde mental, a
cultura de violência e da violação dos Direitos Humanos ainda é marca
constante nos hospitais em funcionamento, um deles é o Hospital
Psiquiátrico de Vera Cruz, alvo de muitas denúncias sobre maus-tratos e
descaso.
“É comum a fuga de
pacientes”. O que se esperar de um local como este? Que os doentes
aceitem ficar por lá? Sendo tratados como escravos (realizando tarefas
perigosas e que não cabem a eles realizarem) e - com o perdão da palavra
- como lixos? A fuga é consequência do tratamento que eles recebem,
qualquer lugar seria melhor do que aquele em que vivem.
Confesso que assisti a reportagem duas vezes, e nas duas vezes a reação
foi a mesma, diria até que na segunda vez fiquei ainda mais indignada
com a situação daqueles pacientes. É, realmente, de cortar o coração.
Os funcionários que trabalham no hospital se recusavam a responder as perguntas feitas pelo repórter, mas mostravam o constrangimento e a decepção de se trabalhar num local como aquele. “Você traria seu pai para um lugar como este?” “Não, porque não é certo o tratamento que eles recebem”. Mas continuam mantendo-se calados diante de tamanha agressão aos direitos do próximo, continuam silenciando os fatos terríveis que acontecem dia após dia. Usam como “desculpa” que necessitam do trabalho e por isso não podem falar nada. É triste saber que os direitos de igualdade foram jogados para debaixo do tapete - ninguém viu, ninguém sabe -. Isso pesa mais ao saber que são pessoas que juraram cuidar do próximo e presar pela vida dos que mais precisavam. Juramentos em falso prejudicando mais de uma vida.
“Como é
possível um ser humano ser tratado dessa forma?” Foi a última pergunta
que o produtor, que passou duas semanas no hospital, se fez ao final do
seu trabalho. E espero que seja essa a pergunta que as pessoas que
tenham assistido ou que tenham acesso a esse texto se façam e revejam
seus conceitos de cuidado e direitos iguais. Porque eu não saberia dizer
se existe um único culpado para toda essa realidade, o que posso
realmente dizer é que somos nós quem, ainda, pode fazer algo para que
essa realidade seja transformada e que o modelo de assistência elaborado
pela I Conferência Nacional de Saúde Mental seja cada vez mais
valorizado e torne-se uma pratica constante.
Referências:
BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
Conexão Repórter: A casa dos esquecidos. Disponível em: http://www.sbt.com.br/conexaoreporter/ Acesso em 25 de Jan. de 2013.
Dicionário Online de Português: http://www.dicio.com.br/normal/
GRUNPETER, P. V, COSTA, T, C, R, MUSTAFÁ, M. A. M. O Movimento Da Luta
Antimanicomial No Brasil E Os Direitos Humanos Dos Portadores De
Transtornos Mentais. Anais do II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia. 25 a 27 de abril de 2007, UFSC, Florianópolis, Brasil.
Reforma Psiquiátrica. Disponível em; http://oglobo.globo.com/politica/dez-anos-apos-reforma-psiquiatrica-brasil-ainda-tem-instituicoes-publicas-funcionando-no-modelo-de-antigos-manicomios-2760053#ixzz2J0GfJ16r . Acesso em 25 de Jan. de 2013.
SAÚDE MENTAL. 18 de Maio: Dias de Lutas. Disponível em: http://saudementales.wordpress.com/. Acesso em 25 de jan. 2013.
FONTE: http://ulbra-to.br/
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