segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

EDUCAÇÃO E SURDEZ: UM PARADIGMA PEDAGÓGICO



                                       Por Vera Lúcia Lopes Dias
 

Em minhas pesquisas e levantamentos efetuados junto à população de alunos surdos profundos e severos nas escolas regulares, tenho constatado um dilema: a surdez vista como um paradigma pedagógico. De fato, quando esse paradigma se explicita, aparece junto o aspecto negativo de ser surdo tal que, nessa sociedade, significa um enfrentamento constante com o desconhecido. Para conseguir um maior nível de consciência e levá-la à prática é importante considerar as condições objetivas e subjetivas, o contexto sócio-econômico-cultural e as formas de pensar dos diversos segmentos da comunidade escolar. A prática escolar tem sido, em geral, desenvolvida a partir da idéia de um aluno hipotético. Se tende a fazer generalizações. Inclusive em relação aos alunos surdos, em detrimento de uma visão mais realista, em que cada pessoa, independente de ser surda, apresenta características de personalidade, produto de seu trajeto histórico-econômico-social. Muitas vezes, não se considera a diversidade característica de qualquer grupo. O grupo dos surdos, como o grupo dos ouvintes, apresenta características internas de raça, de classe, de gênero, de religião, etc., que podem provocar insegurança, inclusive conflitos e divergências, chegando a influenciar na personalidade do indivíduo. Através de tentativas de apreensão das contradições internas do grupo, seria possível entendê-lo melhor. É na variedade de experiências que surgem diferentes perspectivas de valores e de poderes. Noutras situações, no caso do ensino superior, o sistema deve adaptar-se conforme as necessidades desse alunado, partindo de uma postura pedagógica relativamente nova, enfatizando maior aprimoramento de recursos humanos para a área da Educação Especial, onde até mesmo deve-se respeitar a difusão da língua de sinais para surdos não-oralizados dentro das salas de aulas, através da contratação de interprétes ouvintes de língua de sinais, no caso do Brasil, LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais.


Porquanto, por outro lado, não faz sentido nenhum a busca constante pela reafirmação de uma identidade surda, mesmo as definidas pelas teorias atuais vigentes na Educação de Surdos. Teoricamente, há uma vasta gama de variedade de identidades, mas a fogueira corre mais solta nas brigas ideológicas entre surdos e educadores da surdez que defendem, e com razão ‘’justa’’ e ‘’merecida’’, a língua de sinais como primeira língua e aquela outra parcela insignificante de surdos oralizados de destacadas projeções e estilos de vida intelectual em função do sucesso do método oralista. Devido ao meu convívio com surdos oralizados que não participam da Comunidade Surda ou que apenas tomam uma posição neutra, suspeito da "calamidade social" do eu interior que atinge a identidade surda desses meus amigos surdos oralizados. De fato, reconhecendo-me como parte integrante deste último grupo, os surdos oralizados que não oscilem nas transições de sua identidade entre mundo ouvinte e mundo surdo nem se identifiquem com a Cultura Surda, têm imediato reconhecimento consciente que os leva em confronto com a identidade ouvinte. Essa identidade característica dos surdos oralizados, autodenomino identidade surda ouvinte, cuja concepção reconhece e se aproxima mais do padrão do mundo ouvinte, sem hipocrisias. Não devemos nos relegar a padronizar uma identidade surda para melhor identificarmos soluções educativas para cada uma, porque nem mesmo existe uma única identidade padrão para definir quem é mais ou menos brasileiro, eis a ironia. Porque as identidades, antes de tudo, não devem privilegiar uma condição de ser surdo, visto ser um processo de auto-aceitação enquanto pessoa e, sobretudo, também um processo de metacognição. E esses dois processos não dependem necessariamente de uma consciência surda para entendê-la. A identidade é histórica e caminha ao longo de uma vida cheia de marcas pelo que  os surdos se tornam enquanto ser social e participativo na sociedade. Creio que podemos chegar à seguinte conclusão: a fundamentação deve e deveria ser movida pelo ideal pedagógico que analise antes quem é essa pessoa surda, quais suas diferenças individuais, sobre em que bases ideológicas estão sedimentadas suas concepções de mundo. E para que esse ideal pedagógico seja adequadamente suplementado, é preciso respeitar as características individuais de cada grupo de surdos, segundo os quais respondem a determinados padrões de condicionamento, dependendo das diferentes associações teóricas que lhes podem atribuir analogias semelhantes entre si. 


Surdos oralizados e não oralizados geralmente apresentam diferentes raízes de concepção de mundo. Enquanto estes últimos estão mais próximos de uma "massificação" da cultura surda, que tem na língua de sinais a sua manifestação maior de cultura; os oralizados se aproximam mais das manifestações da cultura ouvinte, onde privilegia-se a habilidade da fala e eficácia em leitura labial. Por isso, nota-se que as características pedagógico-educacionais exigidas por ambos os grupos são diferenciadas. Dados colhidos por mim na Universidade Estácio de Sá (UNESA), uma das maiores universidades particulares do Rio de Janeiro, me mostraram que, no primeiro semestre do ano 2001, estiveram regularmente matriculados na referida universidade particular um total de 12 surdos não oralizados, onde suas aulas são direcionadas com a presença obrigatória de intérpretes de língua de sinais. Isso demonstra, por si só, uma questão de adaptação do sistema universitário, através de medidas cabíveis tomadas. Embora um significativo avanço tenha se efetuado, não existe ainda na UNESA uma unidade direcionada exclusivamente aos estudos surdos, com a criação do Núcleo de Estudos Surdos. O caso do acesso dos surdos oralizados nas universidades de grande porte, públicas, gratuitas e de qualidade, é mais delicado, visto que eles se encontram em situação de igualdade de condições em disputas e, por isso mesmo, as concorrências com a maioria ouvinte são muito mais fortes e o nível de dificuldades de comunicação dentro das salas de aulas são, em teoria, muito maior do que aquela apresentada quando há surdos estudando na presença de intérpretes de língua de sinais, daí a principal dificuldade dos surdos ser o acompanhamento das aulas. Em qualquer caso, sempre haverá a barreira da comunicação em ambos os grupos, em maior ou menor grau, além das curiosidades alheias e certo comodismo sob o olhar reprovador de alguns, por puro preconceito velado.


Por conseguinte, não se pode dizer que os oralistas estão certos, tampouco exaltar a eficiência do método cultural dos surdos não oralizados. O objetivo deve ser o de conceber uma plataforma cultural que seja capaz de suprir todas as necessidades do indivíduo surdo que, devido à sua diferença, colocam-no numa situação de inferioridade perante a sociedade majoritária ouvinte.


Para encerrar, não há uma concordância no que se tornará a melhor técnica de formação da mentalidade do surdo como um indivíduo capaz de sobreviver às adversidades da vida sem a preocupação imperiosa que envolve a idéia de sua deficiência. Se, por um lado, não é possível educar efetivamente alguns surdos pelo sistema oralista, sob pena de obstruir ou mesmo retardar seu crescimento cultural inicial, entre outras conseqüências, também não podemos tomar parte da língua de sinais por colocar a capacidade lingüística do surdo em desacordo com a cultura dominante. Sendo que esta cultura dominante urge de ser incorporada sob pena de não dispor de um crescimento profissional maior, o surdo que não domina esta cultura permanece em segundo plano, em serviços secundários e de baixa renda, tornando-se necessário uma nova concepção que atenda à necessidade primordial de tornar a vida do surdo mais produtiva tanto quanto estender seu raio de alcance no seio da sociedade .


Um outro fator se impõe sobre o assunto aqui comentado. Em primeiro lugar, apesar de todas caracterizações apresentadas sobre cada grupo específico de surdos, no caso, os oralizados e não oralizados, há sempre o perigo imposto pela armadilha da generalização. Existem casos raros, que podem ser isolados ou pertinentes a certos grupos, no que se refere à forma de acepção do mundo pelo surdo. Havendo uma enorme variação de situações em que o surdo pode ser bom em leitura labial, mas ruim na escrita, bom em sinais e bom na escrita, é muito difícil ainda, devido à escassez de pesquisas, estabelecer uma base mais resistente a respeito de cada caso específico. Portanto, aqui fica registrado o alerta a respeito das generalizações apresentadas.

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