quarta-feira, 18 de maio de 2011

CARTA DE UM PAI DE SURDO A MARIA TERESA MANTOAN


Prezada Professora Maria Teresa,
 
Sou pai de surdo e li atentamente seu email em que pede adesão pública a um abaixo-assinado on line pelo respeito à Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CPPD). Concordo inteiramente com o que está escrito na Petição, e até mesmo com a convenção inteira, incluindo outras partes dela que a senhora não citou (como o Art. 30), talvez por não achar nesse momento que elas sejam assim tão importantes, embora eu não deva achar, por isso, que a senhora delas discorde ou que as desconheça. Pelo seu currículo Lattes, sei que a senhora nunca estudou sobre a cultura surda e a educação surda; contudo, já que a senhora reivindica a CPPD e a legislação presente em nosso país, sou levado a crer que, assim como eu e outros pais de surdos, também discorda da Diretora de Políticas Especiais da Secretaria de Educação Especial do MEC, quando ela afirmou não haver cultura surda. Afinal, a Decreto 5.626/2005, assinado pelo então Presidente Luís Inácio Lula da Silva, e pelo já Ministro de Educação Fernando Haddad, define “a pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras” (Art. 2º, negrito meu). Então, segundo a lei, que a senhora quer defender contra os partidários da segregação e do assistencialismo, há, sim, cultura surda; e se estamos com a lei, tal como a senhora nos convocar a estar, então não podemos concordar com a Diretora da Secretaria de Educação Especial do MEC.
 
Sou levado a crer também que, concordando com Decreto 5.626/2005, a senhora também o defende quando ele diz no Art. 22 que:
 
“As instituições federais de ensino responsáveis pela educação básica devem garantir a inclusão de alunos surdos ou com deficiência auditiva, por meio da organização de:
“I - escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngües, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental;
“II - escolas bilíngues ou escolas comuns da rede regular de ensino, abertas a alunos surdos e ouvintes, para os anos finais do ensino fundamental, ensino médio ou educação profissional, com docentes das diferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade lingüística dos alunos surdos, bem como com a presença de tradutores e intérpretes de Libras - Língua Portuguesa.
“§ 1o São denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo”.
 
Veja, professora, que o Decreto fala em classes e escolas bilíngues, definindo-as como aquelas em que as línguas de instrução são a Libras e o português escrito. Se defendemos as leis existentes em nosso país, então também defendemos as classes e escolas bilíngues, tais como o decreto 5.626/2005 as define, não é?  Então, nisso também estamos de acordo, prezada professora. Aliás, sob a perspectiva desse Decreto, podemos ver refletida essa sua determinação na própria Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, quando esta define em seu artigo 24 que devem ser garantidos aos surdos:
“b) Facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade linguística da comunidade surda;
“c) Garantia de que a educação de pessoas, em particular crianças cegas, surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados ao indivíduo e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social”.
 
Também o Art. 30, § 4, que a senhora esqueceu de citar em sua proposta de petição, diz que:
“As pessoas com deficiência deverão fazer jus, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a que sua identidade cultural e linguística específica seja reconhecida e apoiada, incluindo as línguas de sinais e a cultura surda”.
 
Veja, professora: segundo a CPPD, é preciso promover a identidade linguística surda, reconhecer e apoiar a identidade cultural dos surdos, de modo mais definido, a cultura surda, e mais ainda, que a educação dos surdos e surdocegos seja ministrada em língua de sinais, em ambientes que lhes sejam favoráveis social e academicamente. É... realmente não concordamos com a Martinha Claret, porque ela, ao contrário de nós, discorda da CPPD! Veja também, professora, que, segundo o Decreto 5.626/2005, os ambientes mais favoráveis ao aprendizado dos alunos surdos são as classes e escolas bilíngues. Concordamos também com isso, não é? Senão, não estaríamos de acordo com a CPPD e as leis de nosso país, como a senhora e eu dissemos estar!
 
Mas, se é assim, professora, então além de discordar da SEEsp/MEC, discorda do que a senhora mesma disse em entrevista à revista Nova escola (Edição 182, maio de 2005):
 
"Uma criança surda, por exemplo, aprende com o especialista libras (língua brasileira de sinais) e leitura labial. Para ser alfabetizada em língua portuguesa para surdos, conhecida como L2, a criança é atendida por um professor de língua portuguesa capacitado para isso. A função do regente é trabalhar os conteúdos, mas as parcerias entre os profissionais são muito produtivas. Se na turma há uma criança surda e o professor regente vai dar uma aula sobre o Egito, o especialista mostra à criança com antecedência fotos, gravuras e vídeos sobre o assunto. O professor de L2 dá o significado de novos vocábulos, como pirâmide e faraó. Na hora da aula, o material de apoio visual, textos e leitura labial facilitam a compreensão do conteúdo". 
 
As pessoas mudam de ideia, o que é muito natural e muito bom. Como disse o poeta, o coração de um mortal muda muito rápido. E cinco anos são mais do que suficientes para que a senhora tenha mudado de ideia! Como a senhora pode recordar ao reler essas palavras, nessa época sua posição era a de que o principal aprendizado linguístico necessário à apreensão dos conteúdos acadêmicos pelos alunos surdos era o português. O menino surdo deveria aprender alguns vocábulos com o professor de português e depois, em outra aula, fazer a leitura labial do outro professor! Mais ainda, a senhora achava que o professor saber libras era até mesmo desfavorável e desestimulante para a aprendizagem do aluno:
 
"É até positivo que o professor de uma criança surda não saiba libras, porque ela tem que entender a língua portuguesa escrita. Ter noções de libras facilita a comunicação, mas não é essencial para a aula”.
 
Graças a Deus, a senhora mudou de ideia e agora concorda com a CPPD e nos convoca a lutar para que – repito! – a educação de surdos seja ministrada em língua de sinais. Estamos, pois, de acordo em que a Libras deva ser a língua de instrução do aluno surdo e que ele não deve ter acesso ao conteúdo ensinado nem primeiramente nem principalmente em português (ainda que escrito), mas, sim, em libras, de onde deverá se apropriar até desse conteúdo específico que é o português escrito. Se é assim, ao invés de a criança surda ficar se esforçando para dar conta ao mesmo tempo de uma língua que não é a dela (e que ela não pode nem mesmo ouvir) e de um conteúdo que lhe é repassado, terá apenas que, como todos os outros alunos, lidar com o inusitado da matéria acadêmica ministrada.
 
Além disso, professora, sabemos que a CPPD é fruto de um longo processo de discussão sobre os direitos das pessoas com deficiências, dentre os quais se encontra o direito à igualdade da pessoa humana, tal como a determina a Declaração dos Direitos Humanos. Por isso mesmo, é também resultado do movimento de inclusão educacional, do qual a Declaração de Salamanca é um dos marcos irrenunciáveis, não é mesmo? Espero que não tenhamos divergência quanto a aceitação desse tão importante documento, que preparou a modificação nas legislações nacionais de diversos países, na perspectiva da inclusão educacional,  e até mesmo a própria CPPD. E o que diz lá sobre a educação das pessoas com deficiências? Antes de tudo, diz assim:
 
“Qualquer pessoa portadora de deficiência [sic] tem o direito de expressar seus desejos com relação à sua educação, tanto quanto estes possam ser realizados. Pais possuem o direito inerente de serem consultados sobre a forma de educação mais apropriada às necessidades, circunstâncias e aspirações de suas crianças” (Introdução, § 2). 
 
Não temos discordância disso, até mesmo porque a senhora e eu concordamos com o direito ao pluralismo pedagógico e com a liberdade de ensino, determinado na Constituição de 1988 (Art. 206, II e III). Portanto, concordamos em que os surdos têm direito a optar em que modalidade de escola quer estudar, e que nada pode ser determinado sobre ele sem dele obter a anuência. Mais uma vez discordamos da SEEsp/MEC, que quer que haja uma única forma de escolarização dos alunos com deficiência, sendo as outras formas transformadas em AEE’s no contraturno.
 
Mas, além disso, concordamos também – assim espero! – com o que a Declaração de Salamanca diz um pouco mais adiante: 
 
“Políticas educacionais deveriam levar em total consideração as diferenças e situações individuais. A importância da linguagem de sinais como meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham acesso a educação em sua língua nacional de sinais. Devido às necessidades particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdocegas, a educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais ou classes especiais e unidades em escolas regulares” (Art. 21).
 
É por isso que nós, surdos e pais de surdos, estamos lutando, professora. Queremos que sejam respeitados os documentos internacionais que o Brasil assinou e as leis nacionais que dizem respeito à educação em geral e à educação dos surdos, em particular. Assim, não vejo por que haver duas petições on line com o mesmo conteúdo. Convido-lhe a somar-se conosco contra os que querem mudar a legislação existente em nosso país sobre a educação de pessoas com deficiências; que defendamos a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência; que defendamos a Constituição de 1988, e a liberdade de ensino e o pluralismo pedagógico que ela garante; que exijamos o cumprimento do Decreto 5.626/2005. Convido-lhe, sinceramente, e porque acredito em sua sinceridade, a assinar a petição a que os surdos estão nos convocando. O link para ele, respeitada professora, é http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoVer.aspx?pi=LutaINES. Nossos nomes poderão se encontrar lá!
 
Acredito sinceramente que a senhora esteja agindo de boa fé quando propõe que lutemos por essas garantias constitucionais e legais. Longe de mim pensar que em seu discurso a senhora esteja manipulando com a CPPD, apenas para criar uma infundada e sofística oposição ao bom combate que surdos e pais surdos estamos travando pela educação bilíngue para surdos. Isso não seria adequado para uma acadêmica do seu porte. Sei que a senhora, apesar de não ser conhecedora da educação surda, não desconhece essa legislação a que fiz referência; e que não estaria se referindo às leis assim levianamente. Acredito sinceramente...
 
Um abraço,
João Emiliano Fortaleza de Aquino, ouvinte, doutor em filosofia, pai de um menino surdo

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