(dois dias depois das vitoriosas jornadas de Brasília)
Senhora Professora Maria Teresa Eglér Mantoan,
Em resposta à minha primeira carta, a senhora me pergunta se conheço “o que a educação especial, na perspectiva da educação inclusiva, oferece aos alunos com surdez, por meio do Atendimento Educacional Especializado, ou nas salas de aula de ensino comum”. Apesar de, segundo a senhora me diz, não ser uma condição necessária conhecer as teorias e as experiências de educação de surdos para ser consultor(a) do MEC em assuntos de inclusão escolar das pessoas surdas, como pais, meu companheiro e eu procuramos, desde que adotamos D., estudar Libras e conhecer as experiências nacionais e internacionais de educação de surdos; particularmente para nós foram muito importantes os relatos de surdos adultos que já concluíram a Universidade e, de alguns deles, os livros que publicaram.
Como pais, responsáveis por uma única criança, sabendo que nossas decisões iriam ter impacto nessa única vida, não poderíamos deixar de estudar sobre as teorias e experiências de educação surda antes de tomar decisões e assumir posições. Dentre as inúmeras coisas que lemos, demo-nos de frente com os documentos oficiais, e até mesmo uns poucos livros para-oficiais (bem chapas brancas mesmo!), que expressam (ou, antes, orientam) a política do MEC. Portanto, professora, conhecemos bem o que a política de educação inclusiva do MEC tem a “oferecer” para meu filho. Por isso a recusamos.
Já a senhora, em resposta à minha carta, diz que é uma “pessoa que não precisa estudar a cultura surda, muçulmana, africana, anglo saxônica [sic], mediterrânea... nórdica, indígena... para sustentar seus pontos de vista”. Mas veja, professora, a senhora não seria consultora do ministério da educação em nenhum país da África, tampouco na Inglaterra ou em algum país do Mediterrâneo, sem que conhecesse a cultura e a história da educação do país em questão. Nem mesmo aqui no Brasil a senhora seria consultora para a educação indígena no MEC se confessasse assim, tão à vontade, publicamente, que não conhece nem quer conhecer sobre as culturas dos povos indígenas e suas propostas educacionais. Mas, que terrível!, a senhora pode, dada a grave situação política e intelectual da Secretaria de Educação Especial do MEC, ser consultora da política anecófoba conduzida, sob sua orientação, por Claudia Dutra e Martinha Claret Dutra. Veja que grave, professora! Suas posições têm consequências na vida diária e no futuro de milhões de crianças e jovens surdos (não apenas de um, como é o nosso caso), mas a senhora não acha importante estudar, conhecer, aprender, ouvir o que dizem as teorias e as experiências históricas da educação de surdos!
Insisto, eu realmente não entendo por que a senhora, que é consultora do MEC para assuntos de inclusão, cujos pareceres que emite e programas que assessora têm impacto na vida de milhões de crianças e jovens surdos, acha que pode desempenhar suas funções sem ter que estudar a respeito! O Dr. Fernando César Capovilla (USP) já havia alertado à sociedade brasileira e à comunidade científica sobre sua “afirmação danosa” (Capovilla), lembra?, de que “é positivo que o professor de uma criança surda não saiba libras” (Mantoan); ele explicou: “Uma declaração de tal modo leviana é ainda mais esdrúxula pois que provém da boca de uma educadora, que deveria promover o conhecimento e não a ignorância. Elogiar a ignorância descredencia o educador”. Acho que compreendo agora a radicalidade do universalismo de sua concepção pedagógica, pois o elogio da ignorância que a senhora faz para os professores da educação básica parece ser, antes de tudo, um programa que a senhora aplica em seu próprio percurso intelectual e profissional. Dada sua influência na Secretaria de Educação Especial do MEC, onde, entre outras coisas, é consultora de um milionário programa de especialização (EAD!) sobre o AEE (Atendimento Educacional Especializado), sugiro-lhe que, com humildade e honestidade intelectual, consulte a vasta bibliografia de autores surdos e ouvintes que conhecem bem a coisa. Aprenda Libras, converse com Fernando Capovilla, leia a Karin Strobel e a Patrícia Rezende, peça sugestões a Ronice Quadros e a Mariana Hora, vá aos Estados Unidos e à Europa (incluindo Portugal!) e conheça as experiências de escolas bilíngues para surdos. E, antes de tudo, compreenda o que as pessoas com deficiência e seus familiares vêm dizendo há anos: “nada para nós sem nós”!
Naquele primeiro email, que provocou minha carta anterior, a senhora falava das leis nacionais e documentos internacionais. Mostrei-lhe que esses regulamentos e marcos legais estão em nosso favor: todos eles exigem respeito à especificidade linguística e cultural dos surdos, quando não chegam a preconizar explicitamente a escola bilíngue para surdos, nas quais, repito a citação, “a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo” (Decreto 5.626/2005, Art. 22, § 1). Agora a senhora não fala mais sobre a legislação (limita-se a referir-se mui abstratamente à “legislação menor” e à “Constituição/88”): reconhece assim que, infelizmente, meu temor se confirmou, e toda sua referência à Convenção dos Direitos de Pessoas com Deficiência (Nova York, ONU, 2007) e às leis eram manobras políticas para tentar desacreditar a luta dos surdos.
Em que pese a confessada, professada e orgulhosa ignorância sobre a língua, a cultura e a educação surdas, a senhora argumenta – sem referir-se a qualquer base documental ou empírica – que há um “desempenho sofrível da maioria de alunos surdos egressos dessas escolas [especiais, sic], no ensino básico e superior”. Primeiro, é preciso insistir: não me referi em nenhum momento, nem nos referimos nunca, a escolas especiais, mas, sim, a escolas bilíngues para surdos (o que, decididamente, não são a mesma coisa!). Segundo: é preciso ter rigor nas análises. A senhora sabe que as avaliações externas demonstram que em todo o país os alunos da educação básica, em seus diversos níveis e anos escolares, têm em sua esmagadora maioria um “desempenho sofrível” (para conferir isso, a senhora pode consultar a página do INEP e as das Secretarias Estaduais de Educação). A situação acadêmica das escolas públicas bilíngues para surdos não se distingue da situação da totalidade das escolas públicas de falantes-ouvintes da Língua Portuguesa. Com exceção de uma pequena porcentagem de escolas (das diversas redes: federal, estadual e, principalmente, particular), dentre as quais se inserem algumas escolas bilíngues particulares, nosso sistema escolar inteiro não consegue mais do que um “desempenho sofrível”. Mas parece que, para a senhora, todo o sistema educacional brasileiro é ótimo, com excelentes desempenhos, mas as escolas bilíngues de surdos... não, essas não, essas são exceções e, por isso, péssimas!
Mas uma apreciação minimamente séria consideraria o importante fato empírico de que as escolas especiais de surdos foram, durante décadas, oralistas. Somente após a Lei 10.436/2002 e, principalmente, após e em virtude do Decreto 5.626/2005, é que começaram a surgir experiências de educação bilíngue para surdos, em classes e escolas específicas, nos termos desse último decreto. Contudo, mal essas experiências começaram, a Secretaria de Educação Especial do MEC passou a desenvolver sua política anecófoba e ilegal de desassistência e combate às escolas de surdos. Ora, qualquer estudioso da educação sabe que quatro ou cinco anos é muito pouco para avaliar uma experiência educacional! Portanto, não há indícios suficientes para falar com rigor e exatidão em “desempenho sofrível” das escolas bilíngues, embora haja, com certeza, de sobra, para afirmar que o oralismo, cuja reintrodução na educação de surdos a senhora e seus associados defendem, conduz não somente a um “desempenho sofrível”, mas ao fracasso escolar (frustração, abandono, reprovação...).
Ademais, professora, é preciso ainda constatar uma coisa: ao arrepio da Lei 10.436/2002, do Decreto 5.626/2005 e da Recomendação 001, do Conselho Nacional dos Direitos de Pessoas com Deficiência (CONADE), de 15 de Julho de 2010, os surdos estão sendo submetidos a avaliações internas e externas (inclusive no ENEM) somente em sua segunda língua (o Português) e não, como a legislação ordena, em língua de sinais. Com isso, professora, ao “desempenho sofrível” comum à grande maioria das escolas brasileiras, soma-se a inadequação das avaliações impostas aos surdos. A senhora já pensou sobre isso? Ou também não precisa desse tipo de consideração empírica e histórica para “para sustentar seus pontos de vista”?
Mas a verdadeira questão é: qual escola propicia um melhor desempenho ao aluno surdo, a escola bilíngue Libras/Português escrito ou a escola monolíngue Português falado/escrito? Nessa questão, achismos e ilusões ideológicas não devem contar. Não sei se a senhora tomou conhecimento, mas o já referido Prof. Capovilla realizou, com financiamento do INEP, da Capes, do CNPq e da FAPESP, um dos maiores programas de pesquisa educacional do mundo com alunos surdos e deficientes auditivos: foram acompanhados mais de 8 mil alunos, de 15 Estados brasileiros, durante dez anos (entre 1999 e 2009), chegando à conclusão de que a escola que propicia um melhor desempenho acadêmico e desenvolvimento social da pessoa surda é a escola bilíngue Libras/Português escrito. Outra pesquisa realizada em Portugal, em 2007, sob coordenação da Profa. Dra. Ivone Maria Resende Figueiredo Duarte, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, chegou a conclusões semelhantes. A pesquisadora fez o acompanhamento de dois grupos de crianças surdas entre 6 e 12 anos, um deles inserido em escolas tradicionais monolíngues para usuários da Língua Portuguesa (contando, porém, com intérpretes de língua de sinais em sala de aula), outro em escolas bilíngues Língua Gestual Portuguesa (LGP)/Língua Portuguesa. A conclusão a que chegou a Profa. Ivone Duarte é a de que “o ensino bilíngue contribui para o incremento da capacidade de aprendizagem das crianças [surdas], bem como para a utilização prática dessas mesmas competências [de atenção, associação, contextualização e integração dos conhecimentos adquiridos]”. Todas essas informações, com mais detalhes, a senhora pode encontrar facilmente na internet.
Com muito preconceito e arrogância, a senhora diz desconfiar que os surdos “estariam mais uma vez desinformados”. Mais uma vez? Por que “mais uma vez”? Será por isso que acha que pode decidir sobre eles à sua revelia? A senhora acha mesmo que os surdos estão sempre mal-informados? Eles não podem mesmo decidir sobre que educação querem? A senhora diz que “a falta de informação sobre o que a educação inclusiva oferece e preconiza faz com que as pessoas surdas e seus defensores preguem algo que já está disponível, mas que não podem ou não querem ver. Os motivos? Não sei”. Quem disse para a senhora que há falta de informação? A senhora sabe que não; sabe que, por exemplo, as companheiras Patrícia Rezende, Karin Strobel, Mariana Hora e outros tantos – com quem, aliás, deveria se orientar – bem conhecem os documentos da Secretaria de Educação Especial do MEC! Por que maldosamente a senhora insiste em dizer que os surdos são mal informados? No parágrafo seguinte pergunta novamente: “Quem está lhes infundindo nas pessoas surdas e na opinião pública essas ideias? Com que intenção?”. A senhora acha que os surdos não são capazes de pensar por si sós, sendo então que há pessoas “infundindo” neles essas perigosas ideias?
A senhora afirma isso com que intenção, professora?
Não sei exatamente, mas desconfio. A proletarização crescente do trabalho acadêmico, acompanhando o emburrecimento igualmente crescente de toda a sociedade, faz com que os poucos poderes adquiridos por alguns intelectuais nos últimos governos – poder de decisão, poder sobre um milionário orçamento, poder de dispor da atividade profissional de seus pares, poder de certo reconhecimento social e institucional, poder de serem ouvidos pelos governantes –, esses poucos (e bobos!) poderes, que tanta satisfação super-egóica oferecem, precisam ser defendidos à exaustão! Sabemos que, desde o governo Lula, aumentou em algumas vezes o orçamento da Educação Especial do MEC, orçamento que precisa privilegiar e financiar um certo saber (ou elogiada ignorância), que só pode sustentar seu privilégio de financiamento às custas do desprezo de outros saberes. Será por isso que a senhora diz que não é importante o professor de surdos saber Libras? Que importa tampouco a senhora conhecer sobre cultura e educação de surdos? Será que é porque seu suposto saber precisa concorrer com outros saberes, deslegitimando-os, para que então sua escola de pensamento (com os dois ou três grupos de pesquisa a ele afiliados) possa monopolizar as verbas da Educação Especial, fazendo publicamente o elogio da ignorância? Por que uma corrente que estuda a questão da deficiência intelectual, cujas posições mesmo nesse campo são teoricamente questionáveis, quando alçado a posições de reconhecimento e decisão, precisa dizer que pouco importa conhecer a cultura e a educação de surdos? Por que seu suposto saber sobre deficiência intelectual importa e o saber surdo sobre o surdo não importa? Desconfio, sinceramente, que é porque seu saber (ou voluntária ignorância) vale (e precisa valer) um orçamento milionário, base de um miserável status acadêmico...
Em todas suas falas sobre as posições dos surdos, verifica-se a mesma postura preconceituosa, base de uma política voluntarista, autoritária e desinstitucionalizante – essa mesma conduzida por suas discípulas da SEEsp/MEC e alhures –, que acha que os surdos não podem ser levados em conta na definição de políticas para a educação de surdos. Como as outras pessoas que se lhe associam academicamente nos seus milionários empreendimentos acadêmicos, a senhora não opina para debater, a senhora fala para ser obedecida. Como a Secretaria de Educação Especial da qual é consultora e maître à penser, a senhora também não submete suas infundadas e preconceituosas opiniões ao debate público, mas simplesmente decide e envia ordens. O conforto com que a senhora pode fazer isso é tal, que até mesmo confessa publicamente que não precisa, para tanto, estudar e conhecer. É o que se verifica em todos os seus discípulos, no MEC e em uma ou outra Universidade: quem coordena cursos sobre AEE nem sequer conhece a definição que o Decreto 5.626/2005 dá de educação bilíngue para surdos; outra, que é especialista em ensino de português para surdos, é obrigada a reconhecer publicamente que sabe apenas “um pouquinho” de Libras. Abriu-se uma verdadeira temporada de faça-se o que se quiser com a educação de surdos! As tentativas suas e de seus discípulos em cercear os sinais dos surdos chegam ao ponto de simplesmente ignorar suas opiniões e propostas: sem nenhum conhecimento da coisa, vocês se acham no direito de decidir sobre nós sem levar em conta e consideração o que nós – surdos e pais de surdos – temos a dizer.
João Emiliano Fortaleza de Aquino
Pós-Doutor em Filosofia (USP), Professor Associado da UECE, ouvinte, pai de surdo
Dr João Emiliano está arrasando. Ele sim poderia ter uma cadeira no MEC. Tem vivência como pai e uma leitura atualizada sobre a inclusão neste século. Estamos vendo que o cerco está se afunilando e que estamos nos juntando para mostrar que FALAR de inclusão é uma coisa. PRATICAR é outra. Compreender, é uma terceira.
ResponderExcluirMuito bom!
Maria Elisa G. Fonseca
Parabéns pelo desabafo tão bem detalhado...
ResponderExcluirSou doutorando em educaçao. Moro no interior de MS. Tive oportunidade de ouvir a Manton profeir palestras aos professores da minha região. E, de fato precisamos ter um olhar mais criticos para a fala de certos consultores do MEC, visto que eles saem proferindo verdades a tecnicos de secretarias municipais que em muitos casos tem uma visão ingenua do processo. Depoimento igual o seu, alerta e muito a populaçao de educadores, sejam pais ou professores. Parabens.
Leni.