Por PAULO CESAR DA SILVA GONÇALVES
Introdução
Uma das grandes dificuldades do surdo é lidar com suas emoções e
sentimentos. Não porque seja diferente dos ouvintes, que vivem os
mesmos conflitos e angústias, mas pela inexistência de um sistema de
atendimento psicológico que contemple suas necessidades e
peculiaridades.
Nos últimos dez anos temos observado um movimento crescente em
direção à inclusão social dos surdos, com iniciativas do poder público e
da sociedade em geral, mas a maioria delas se destinam à educação do
surdo, ao ensino da Língua Brasileira de Sinais-Libras, formação de
professores especializados, intérpretes, além de uma grande quantidade
de trabalhos acadêmicos visando desvendar o mundo dos surdos, mas muito
pouco tem-se avançado no tratamento psicológico das pessoas portadoras
de surdez.
Com base em minha experiência clínica de atendimento ao surdo,
iniciada há dez anos, em Brasília, já é possível fazer uma avaliação do
progresso e das dificuldades enfrentadas nessa área de atendimento.
Raros são os profissionais de psicologia que se interessam de forma
definitiva por esse novo desafio, possivelmente pela dificuldade do
aprendizado da Libras, indispensável ao trabalho terapêutico com os
surdos. Por outro lado, não basta aprender Libras e iniciar o
atendimento. É fundamental uma constante convivência com a comunidade
surda, para que se possa compreender sua cultura e identidade, além da
necessária vocação para lidar com as diferenças.
A terapia com surdos é uma tarefa penosa, que requer muita dedicação e
paciência, pois além do surdo, o trabalho se estende à família, um dos
principais focos dos conflitos da pessoa surda. Poucos se dão conta da
dimensão do sofrimento psicológico e moral do surdo. A falta de
comunicação, o isolamento, o preconceito, fazem do surdo um ser
dependente do ouvinte, ainda que tenha conseguido avançar em sua
educação e desenvolvimento cognitivo. Essa dependência reduz sua
auto-estima, produzindo conflitos que muitas vezes são interpretados
equivocadamente como comportamentos típicos do surdo, como:
agressividade, intolerância, individualismo, incapacidade intelectual,
quando na verdade essa visão resulta do desconhecimento do mundo dos
surdos. Contudo, não se pode negar que a cada dia os surdos progridem em
suas conquistas e afirmação como cidadãos.
Abordagens clínicas e terapêuticas
Muitas vezes me perguntam qual a abordagem terapêutica que adoto no
atendimento ao surdo. É uma curiosidade natural. Afinal os psicólogos
seguem geralmente uma tendência teórica pela qual tem afinidade e
preferência. Mas eu afirmo que se nos limitarmos a uma única abordagem
terapêutica no caso dos surdos, vamos restringir nosso campo de ação.Há
um universo muito amplo de variáveis e especificidades no tratamento
psicológico do surdo.
É preciso considerar:
a) Faixa etária
b) Período de aquisição da surdez ( pré ou pós-lingual)
c) Nível de capacidade auditiva ( leve, moderada, severa, profunda, uni ou bilateral)
d) Outras sequelas ( motoras, neurológicas, surdocegueira)
e) Ambiente familiar
f) Nível de oralidade/ leitura labial e sinalização em língua de sinais
g) Nível socioeconômico
h) Preferências sexuais (atualmente existem associações de surdos gays)
i) Envolvimento com drogas e atividades ilícitas
Essa gama de condições e peculiaridades exigem do terapeuta uma
postura profissional eclética, além da possibilidade de ter que intervir
com aconselhamento em conflitos familiares, judiciais e nas relações de
trabalho.
Não basta, portanto, dar consultas no consultório, e torcer para que o
surdo resolva seus problemas. É fundamental que o terapeuta esteja
aberto a uma visão holística do atendido, em suas dimensões física,
mental e espiritual ( no sentido de espiritualidade e não de
religiosidade).
Não se descarta, portanto, o uso de técnicas e procedimentos da
terapia comportamental, cognitiva, gestaltista, e mesmo psicanalítica, e
de outras abordagens. Cada caso requer procedimentos próprios e
compatíveis com a especificidade do cliente. Sem falar na necessidade do
trabalho interdisciplinar, com o fonoaudiólogo, o psicopedagogo, o
psiquiatra e outros profissionais.
Na condição de terapeuta de surdos, muitas vezes precisei participar
de audiências na justiça, em processos criminais e de direito de
família, para justificar laudos, esclarecer condutas do cliente diante
do juiz, bem como visitar empresas para dialogar com empregados e chefes
ouvintes, com o objetivo de melhorar as relações de trabalho.
Técnicas e procedimentos terapêuticos
Diante das peculiaridades do comportamento do surdo, desenvolvemos ao
longo de nossa experiência clínica, alguns procedimentos básicos para
diagnóstico e tratamento, tais como:
- Entrevista inicial (Anamnese), com a presença de um dos responsáveis (geralmente a mãe)
- Grafismo ( testes projetivos, desenho, pintura )
- Mágicas e brincadeiras ( crianças e adolescentes)
- Acesso ao computador (softers e programas especiais, que permitem diversão e, ao mesmo tempo, observação de padrões comportamentais, coordenação motora, níveis de frustração/ agressividade, desenvolvimento cognitivo e outras habilidades/aptidões). O uso da internet, hoje dominado pela maioria dos surdos é muito útil para interagir com o surdo.
- Escuta. O surdo é “tagarela”, gosta de desabafar, repetindo no início as mesmas histórias. A intervenção do terapeuta ocorre no estágio de “fadiga” do discurso, quando então ele se torna receptivo.
- Informação pedagógica. Conceitos e informações práticas, para o auto-conhecimento e compreensão do mundo, com vistas a melhor comunicação e interpretação dos conteúdos trazidos durante a terapia.
Treinamento e competência do terapeuta
O psicólogo que deseja trabalhar com surdos deve primeiramente
entender que essa é uma área de grande demanda. No entanto a quase
totalidade dos surdos nunca teve acesso a psicoterapia, devido ao alto
custo, – e somente uma minoria tem condições financeiras para o
tratamento-, ou simplesmente porque o poder público não oferece esse
tipo de atendimento e quando oferece, é precário e sem profissionais
habilitados e capacitados para essa especialidade. Até mesmo porque não
existem cursos de capacitação para terapeutas de surdos. Desse modo, é
muito difícil encontrar profissionais em todo o país que se dediquem a
essa prática.
Outra exigência é que o psicólogo precisa aprender Libras, o que pode
hoje ser feito com facilidade, pois há oferta de cursos pelo menos nas
principais capitais e cidades de maior porte. O aprendizado de Libras só
se torna efetivo com a convivência com a comunidade surda, através de
Associações e grupos de surdos.
Enquanto o terapeuta não dominar a Libras, pode iniciar atendimentos
com surdos oralizados, o que facilita a comunicação. É importante que a
família do surdo seja orientada, principalmente as mães, e incentivadas
para que aprendam Libras para melhor comunicação com o filho. Algumas
Associações promovem cursos de Libras para as mães e familiares.
É fundamental que o terapeuta realize pesquisas sobre surdez, sobre a
cultura e identidade surda, a partir do próprio trabalho que realiza e
também associando-se a grupos de pesquisas que existem em Universidades e
outras instituições que atendem surdos.
O atendimento psicológico ao surdo constitui um grande desafio e também um mercado de trabalho em potencial para o psicólogo.
Atualmente a maioria dos surdos, principalmente os mais jovens, tem
acesso a internet e uso de celular, e o terapeuta precisa participar
desses redes virtuais para estabelecer vínculos com os surdos.
Existe já um grande acervo de ferramentas para o trabalho do
terapeuta, como livros e filmes sobre a vida dos surdos, educação,
Libras, alguns produzidos pelo governo através do INES – Instituto
Nacional de Educação de Surdos e outros por instituições privadas.
A competência do terapeuta vai sendo construída com o tempo e pelo
desejo de servir a essa causa tão importante, que é preparar o surdo
para exercer seus direitos e deveres de cidadão e oferecer a
possibilidade de atendimento psicológico a essa minoria tão sacrificada e
discriminada desde a antiguidade.
Conclusão
Fica aqui um desafio para os futuros psicólogos, que estão em
formação, e profissionais já atuantes, no sentido de que lancem um olhar
sobre o universo dos surdos, tão fascinante e intrigante, e ainda tão
inexplorado.
São tantas as perspectivas para pesquisa e estudos na área de
aprendizagem, percepção, linguagem, desenvolvimento, enfim, um vasto
campo de crescimento e aprimoramento profissional.
Entendo que o psicólogo, além de profissional competindo em um
mercado de trabalho, tem também uma função social, de melhorar a
qualidade de vida das pessoas, de contribuir para uma sociedade mais
justa e equalitária. E por que não dedicar um décimo, talvez, de seu
tempo, para um trabalho voluntário, para essa parcela carente e sofrida
da população, mas com imenso potencial de desenvolvimento. Afinal, desde
que a Libras foi aprovada como língua oficial dos surdos, o Brasil é um
povo com duas línguas, mas continuamos todos irmãos.
fonte: http://editora-arara-azul.com.br/
* O TEXTO ENCONTRA-SE EM SEU FORMATO ORIGINAL. ERROS GRAMATICAIS E DISTORÇÕES SÃO DE RESPONSABILIDADE DO AUTOR.
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